Como o manejo do vinhedo está permitindo a colheita de uvas em várias estações do ano.

Por Suzana Barelli, especial para o Sonoma Market

No calendário vitivinícola, as plantas hibernam no inverno, começam a florescer na primavera, seus frutos crescem no verão e a colheita acontece entre o final desta estação e o começo do outono. Essa verdade já foi absoluta, mas não é mais. Desta vez, a culpa não é das mudanças climáticas – em que o calor excessivo de alguns anos adianta a maturação da uva –, mas sim de uma técnica que vem revolucionando a viticultura realizada fora das regiões tradicionais de cultivo de videiras.

A técnica da dupla poda, também chamada de poda invertida ou de colheita de inverno, é mais uma das responsáveis por permitir uma mudança no mapa dos vinhedos mundiais. Se a variação do clima permite o cultivo de videiras em áreas antes impensáveis, no qual os bons espumantes ingleses são um bom exemplo, a dupla poda muda o calendário da colheita, permitindo que uvas estejam prontas para a colheita em todas as estações do ano.

A técnica tem no pesquisador brasileiro Murillo Regina o seu grande porta-voz e funciona ao permitir “enganar” a videira, por meio de podas, irrigação e hormônios. Com este manejo, as vinhas dão frutos no inverno, longe das chuvas de verão, que diluem a complexidade de seus frutos, além de trazer as doenças. Mais: a amplitude térmica entre o dia e a noite, tão necessária para a uva obter complexidade, é maior no período de outono e inverno. No Brasil, esta técnica tem melhores resultados nas regiões Sudeste e Centro Oeste. No Sul, é frio demais, e nas regiões mais ao norte do nosso país são poucos os lugares, com a exceção de uma ou duas montanhas, a amplitude térmica é muito pequena.

Esta poda começou a chamar atenção nos vinhedos que margeiam o rio São Francisco, na divisa entre a Bahia e Pernambuco. Com a irrigação, as plantas chegam a realizar dois ciclos e meio por ano. Mas nesta produção são poucos os vinhedos que dão origem a vinhos com maior complexidade – um exemplo é o Testardi Syrah, projeto cercado de cuidados pela vinícola Miolo, no lado baiano do rio São Francisco. O nome do vinho é uma referência ao termo “teimoso”, de plantas que persistem em um local mais inóspito para a agricultura, como exemplificam os cactos que crescem naturalmente ao lado dos vinhedos.

Miolo Single Vineyard Syrah Vale do Rio Sao Francisco

O vinho Miolo Single Vineyard Syrah é um dos rótulos produzidos no Vale do Rio São Francisco pela Miolo.

Para ter maior qualidade, as plantas precisam também descansar e não produzir todos os meses do ano como acontece no Vale do São Francisco. Esse “descanso”, elas encontram em regiões montanhosas das divisas de São Paulo, com Rio de Janeiro e Minas Gerais, onde são manejadas para ter uma única colheita por ano. O primeiro grande exemplo da complexidade possível de ser obtida está na medalha de ouro conquistada pelo Vista do Chá Syrah 2012. Elaborado pela paulista vinícola Guaspari, localizada no lado paulista da Serra da Mantiqueira, este tinto foi o primeiro vinho brasileiro a obter a medalha de ouro no renomado concurso Decanter World Wine Awards, organizado pela revista inglesa Decanter.

A Serra da Mantiqueira vem se consolidando como o local dos vinhos de inverno, em um projeto que começou em 2001, com o plantio das primeiras vinhas, em caráter experimental, por Murillo Regina, em parceria com a Epamig e o empresário Marcos Arruda Vieira. O primeiro vinho de inverno foi o Primeira Estrada, da safra de 2010 e lançado em 2013.

O conceito cresceu e no final do ano passado as amigas Andreia Gentilini Milan, sommeliere, e Juciane Casagrande, enóloga, sócias do projeto Amitié, termo que significa amizade, lançaram uma coleção que exemplifica as estações do ano na viticultura brasileira. “Em 2018, 2019, começamos a observar como o Brasil tem também esta diversidade colheitas de uvas nas várias estações do ano”, conta Juciane.

Com a filosofia de se associar a produtores locais, elas procuraram uvas em diversas regiões brasileiras para este projeto. O primeiro vinho é um Cabernet Franc, variedade que chegou a ser muito plantada na Serra Gaúcha (RS), antes de perder espaço para a Merlot. “É uma colheita tradicional de verão”, destaca Juciane. No estado mais ao sul do Brasil, salvo exceções, a colheita ocorre em pleno verão. É uma estação chuvosa que, nas safras clássicas, atrapalha o ganho de qualidade da uva, mas em anos de seca, como este de 2022, entrega frutas de maior complexidade e sanidade.

Vinho Rose produzido com uvas Merlot pela vinicola Amite no Rio Grande do Sul.

Vinho Rosé produzido com uvas Merlot pela vinícola Amité no Rio Grande do Sul.

A segunda colheita acontece no outono, em Santa Catarina. O frio da região montanhosa faz com que a uva mature muito devagar, adiando a sua colheita para final de março, começo de abril, quando já estamos no outono. É um clima mais adverso, desafiador. A terceira colheita é a de inverno, elaborado com a uva Syrah e que permite fugir do verão chuvoso do centro sul brasileiro.

Por fim, a dupla se deslocou para o vale do rio São Francisco para obter o seu vinho de primavera. A Tempranillo foi a variedade escolhida, para este tinto de maior frescor e leveza.

De todas as estações, o verão ainda concentra a produção brasileira, tanto de vinhos como de espumantes. É o ciclo natural da videira, que se repete em todas as regiões vinícolas. Mas a colheita de inverno vem chamando maior atenção dos produtores, com novos projetos que não param de surgir. O mais recente é o Sacramentos Sabina, que foi eleito o melhor vinho tinto brasileiro da safra de 2021 no guia Descorchados, do chileno Patrício Tapia. É um 100% Syrah, com uvas da serra da Canastra, em Minas Gerais, e vinificado pelo enólogo uruguaio, mas de alma brasileira, Alejandro Cardoso.

Conheça os vinhos brasileiros da curadoria do Sonoma Market!

suzana barelli coluna sonoma market
Jornalista especializada em vinhos, Suzana Barelli agora também é colunista especial do Sonoma Market.

Suzana é atualmente colunista de vinhos do caderno Paladar, do jornal O Estado de S.Paulo. Ela escreve de vinhos desde o início dos anos 2.000. Foi editora de vinhos e diretora de redação da Revista Menu, e redatora-chefe da Revista Prazeres da Mesa. Também atuou como jornalista nas revistas Gula, Primeira Leitura e Carta Capital, e nos jornais Folha de S.Paulo e Valor Econômico.

 

Suzana Barelli

Você também pode gostar

Deixe um Comentário