Deixe a nomenclatura de lado e aproveite a diversidade das bebidas fermentadas

Por Suzana Barelli, especial para o Sonoma Market

Espumante de caju ou de carambola, vinho de abacaxi, de jabuticada ou de sapoti. A lista de fermentados de fruta é vasta e acompanha a diversidade da nossa flora tropical. Mas também desperta uma pergunta: são mesmo vinhos e espumantes?

A resposta é: depende. Se formos seguir a definição de vinho pela legislação brasileira, eles seriam apenas fermentados de frutas. Vinho, diz a lei brasileira, é a bebida obtida a partir da fermentação alcoólica parcial ou total do mosto da uva. Mas a restauratrice Liz Cereja, da Enoteca Saint Vin Saint, lembra que a origem da palavra vinho, que vem do sânscrito, não tem qualquer relação com a palavra videira e significa licor divino, não necessariamente de uva. Ou seja, é uma palavra sem qualquer associação à fruta que hoje dá origem aos vinhos. Por este raciocínio, os fermentados podem, sim, ser chamados de vinho. “Usamos a nomenclatura do mundo conhecido para dar nome ao desconhecido”, resume Lis.

Na pioneira Cia dos Fermentados, fundada em 2015, a preocupação de utilizar ou não o nome vinho para estas bebidas vem perdendo sentido. Se no início da empresa, os sócios Fernando Goldenstein Carvalhaes e Leonardo Andrade não chamavam de vinho ou espumante os seus fermentados, agora não há mais esta preocupação. “Temos, por exemplo, um borbulhante de carambola, que é uma forma criativa de burlar a lei”, diz Carvalhaes.

vinho fruta fermentados

Hidromel borbulhante de Jataí, feito pela Companhia dos Fermentados.

Assim, a questão da nomenclatura pode ficar numa licença poética. Podem ser vinhos porque fermentam e alguns são espumantes porque borbulham, ou seja, guardam para si o gás carbônico gerado na fermentação. Podem ser também chamados de sidra, que é o fermentado de maça. O que é relevante, aqui, é o crescimento da oferta destas bebidas. Está certo que antes da chegada dos europeus tinha uma maior variedade de fermentados no Brasil, que foi se perdendo ao longo do tempo. O melhor exemplo talvez seja o cauim, bebida indígena que nasce da fermentação da mandioca. “Hoje, a importância é resgatar esta biodiversidade. Assim como as uvas têm propriedades que, quando fermentadas fazem bem para a saúde, um caju, um abacaxi, um camu-camu também têm”, destaca Lis Cereja.

Um exemplo é o projeto Seiva, do casal Marina Santos, conhecida pelos vinhos da Vinha Unna, e Israel Dedéa, chef do Champenoise Bistrô, restaurante na Serra Gaúcha (RS). Ainda antes de elaborar seus vinhos – sua primeira safra foi em 2012 –, Marina implementou o conceito de agrofloresta na propriedade e começou a pesquisar as árvores frutíferas da Mata Atlântica. “Desde o início da pesquisa, a ideia era elaborar um fermentado de espumante. Estudamos bastante as características de cada fruta nativa e sabíamos que o caminho era este”, conta Marina. O resultado é que atualmente o projeto conta com fermentados de pitanga, butiá, araçá, guabiroba, uvaia, entre outros.

fermentados frutas vinho

Espumante seco produzido pela Vinha Unna e Projeto Seiva.

Aqui não é uma fermentação igual a do vinho. O desafio é entender as características de cada fruta, assim como atualmente já se sabe muito sobre as uvas. “Cada fruta nativa tem um segredo para fermentar”, afirma Marina. Os teores de açúcar e de acidez variam muito entre uma pitanga, uma guabiju e uma cereja do mato, para citar três fermentados do Projeto Seiva. A quantidade de polpa e do líquido de cada fruta também é importante neste processo, assim como há variedades que podem ser fermentadas com o caroço e outras em que o caroço pode trazer compostos aromáticos ou gustativos que influenciam negativamente na bebida final. “Queremos um produto extremamente fiel ao caráter varietal de cada fruta”, afirma Marina.

Com a uva, este conhecimento é maior, por mais que os enólogos estejam sempre aprendendo. Um exemplo é a quantidade de engaço que pode entrar num tanque de fermentação. Em uvas tintas mais encorpadas, eles são desnecessários, mas naquelas de casca mais fina, fermentar com uma porcentagem dos cachos sem desengaçar pode trazer complexidade à bebida final. Mas este ainda é um ajuste fino, mesmo com o vinho de uva sendo elaborado há muito tempo.

Pouco a pouco, os fermentados estão entrando no hábito do consumidor, em uma variedade maior de produtos do que apenas o pão, o iogurte e a cerveja. Na Cia dos Fermentados, por exemplo, já são 55 produtos e o olhar atento a que fruta pode ser fermentada é uma constante. Um exemplo é que está previsto para breve o lançamento da sidra de caju. A explicação, acredita Carvalhaes, é que as pessoas estão descobrindo que podem fazer os seus próprios fermentados em casa. “Não são processos complicados, e as pessoas gostam de fazer o seu próprio vinho de fruta e mostrar para os amigos”, lembra Andrade.

Equipamentos ajudam, claro, o que facilita os processos e evita surpresas desagradáveis no final, que são recursos que os indígenas nunca puderam contar. Atualmente, sabe-se que o controle da temperatura é fundamental, assim como acontece nos vinhos de uva – é só reparar na quantidade de tanques inoxidáveis, todos com termômetros acoplados nas vinícolas. A explicação é que cada micro-organismo que vai fermentar atua em uma temperatura diferente, e este processo gera um ganho de calor.

Nos dias atuais, densímetros e termômetros são os principais equipamentos, mas há também os recursos empíricos. Um exemplo simples: se por acaso o cheiro está ruim, alguma coisa deu errado. E talvez seja o caso de abortar esta fermentação. Outra questão, destaca Marina, é que a quantidade de sulfito natural que cada fermentado de fruta produz é diferente, o que reflete no tempo em que o produto pode ficar na prateleira. O sulfito, também no vinho, é o conservante natural da bebida.

Conheça a curadoria incrível de vinhos naturais do Sonoma Market!

suzana barelli coluna sonoma market
Jornalista especializada em vinhos, Suzana Barelli agora também é colunista especial do Sonoma Market.

Suzana é atualmente colunista de vinhos do caderno Paladar, do jornal O Estado de S.Paulo. Ela escreve de vinhos desde o início dos anos 2.000. Foi editora de vinhos e diretora de redação da Revista Menu, e redatora-chefe da Revista Prazeres da Mesa. Também atuou como jornalista nas revistas Gula, Primeira Leitura e Carta Capital, e nos jornais Folha de S.Paulo e Valor Econômico.

Suzana Barelli

Você também pode gostar

Deixe um Comentário