Quis o destino que a terra dos grandes espumantes franceses fosse a primeira região vinícola que eu visitei.
Por Suzana Barelli, especial para a Sonoma Market
Dom Pierre Pérignon (1638 a 1715), o monge beneditino tão ligado à história do Champanhe, tem uma influência enorme na minha chegada ao mundo do vinho.
Naquela época, final dos anos 1990, eu ainda nem gostava de champanhe – hoje, uma das minhas bebidas favoritas –, mas eu poderia ter cunhado a sua frase mais famosa, a “estou bebendo estrelas”, para reproduzir a sensação de provar o seu champanhe.
E a minha estreia foi mesmo em grande estilo: na própria Abadia de Hautvillers, exatamente onde o monge trabalhou no final do século XVII, começo do XVIII, primeiro para tentar solucionar o problema das borbulhas, que teimavam em aparecer e, pior, em explodir algumas garrafas. E, depois, ao se render ao vinho espumante, que não foi uma criação sua – hoje, a história comprova que antes dele já se elaborava espumantes em Limoux, na abadia beneditina de Saint-Hilaire, no sul da França –, mas seu nome será para sempre relacionado à bebida.
Nesta quase virada para o século 21, eu fui visitar a abadia numa viagem bem glamorosa, promovida pela Moet Hennessy, a divisão de bebidas do grupo LVMH. Almoço no Pierre Gagnaire, meu primeiro restaurante três estrelas Michelin; visita ao ateliê da Louis Vuitton, na pequena cidade de Asnières, e ao seu exclusivo museu que traz as mais encantadoras malas de viagem; hospedagem no hotel Royal Champagne e, claro, tudo regado ao vinho espumante local, ou seja, o champanhe.
E foi lá que pela primeira vez prestei atenção à bebida, talvez emocionada pela sua história e por todo o ambiente. Até então, confesso, para mim, champanhe deveria ser apenas aquela bebida docinha que a minha nonna, como chamávamos a minha avó italiana, adorava tomar no Natal.
E esta viagem foi quase um MBA no tema, das uvas que dão origem à bebida (em geral pinot noir, pinot meunier e chardonnay, mas tem outras três autorizadas e pouco utilizadas); do método clássico, ou champenoise; de segunda fermentação na garrafa; dos pupitres e de todo o mundo próprio dos champanhes.
Na abadia, tem um pequeno museu com os objetos da época utilizados pelos monges. Tudo perfeitamente preservado, ao menos esta é a minha memória. No jardim, é cultivado um vinhedo seguindo os mesmos princípios de três séculos atrás, como lembro do guia explicar com orgulho.
Cercado por muros de pedra, a abadia é uma volta ao passado, que me levou a imaginar as dificuldades que os monges passavam para entender porque o champanhe voltava a fermentar. Alias, naquela época eles nem sabiam o que era esta tal de fermentação.
Foi só com Louis Pasteur (1822 a 1895), quase dois séculos depois, que se descobriu que eram as leveduras as responsáveis pelas borbulhas que apareciam e, conforme a sua força, quebravam as garrafas. Em Champanhe, até recentemente a região vinícola mais ao norte do hemisfério norte, elas hibernavam no rigoroso inverno francês e voltavam a trabalhar no calor da primavera.
É neste jardim que eu me lembro da minha taça de champanhe e de pensar que eu também estava bebendo estrelas. A sensação de plenitude continuou com a visita às caves subterrâneas, agora não da Dom Pérignon, mas da Moët E Chandon, que também pertence ao grupo.
Champanhe, com o seu solo calcário peculiar, tem mais de 100 quilômetros de túneis subterrâneos, onde as garrafas são armazenadas. Da Moët, são quase 30 quilômetros de caves embaixo da cidade. É impressionante. Pela regras da Appellation D’Origine Contrôlée (AOC), um champanhe deve ficar pelo menos 15 meses descansando na garrafa em contato com as leveduras, e os túneis são a morada perfeita destas garrafas. É um ambiente escuro, com temperatura sempre baixa e controlada.
Mas ao turista, ou melhor, à jornalista, estes túneis eram um convite para se perder por eles e passar os dias degustando champanhe. Na passagem pelos pupitres, uma peça em madeira que permite ao profissional ir conduzindo as leveduras até o gargalo da garrafa para a sua remoção posterior, eu até pensei onde poderia me esconder. Mas logo lembrei que vários turistas deviam ter a mesma ideia e que as câmaras de segurança estavam ali para isso. Era melhor prestar atenção às informações do guia porque teria uma reportagem para escrever quando voltasse ao Brasil.
Até hoje não sei muito bem porque eu fui escolhida para esta viagem. Na época, eu trabalhava na revista Carta Capital e já tinha escrito alguns textos sobre vinho no meu emprego anterior, na Folha de S.Paulo. Alias, eu vivia a questão se continuava no jornalismo econômico ou se migrava para o que hoje se chama de enogastronomia (naquela época, este termo nem era falado ainda).
O fato é que o convite chegou à revista, e o Mino Carta, então o diretor de redação, indicou que quem iria era aquela moça que gostava de vinho, ou seja, eu. Naquela época, eu estava começando a estudar sobre vinhos, mais como hobby, menos como profissão.
Assim, quis o destino que Champanhe fosse a primeira região vinícola que eu conheci. Ali aprendi que a bebida é o vinho espumante elaborado nesta região e com regras bem claras, de acordo com a AOC. Mas, principalmente, aprendi também a como entender uma região vinícola, a prestar atenção do solo, no clima local, na maneira que o vinhedo é conduzido.
O nosso pequeno grupo de jornalistas contava com a presença de Jorge Carrara, um grande e querido especialista de vinhos, falecido recentemente, que não desgrudava do seu caderninho. E era ele quem fazia as melhores perguntas.
As minhas perguntas eram mais tímidas – até conferi isso recentemente com a Karina Guarita, que na época da viagem era coordenadora de Relações Públicas da Chandon do Brasil, que acompanhou o grupo. Ela me definiu como muito calada e observadora. Ainda me faltava conhecimento até para perguntar.
Mas sei que a visita à abadia não me foi indiferente. Ali foi plantada a sementinha que me move até hoje, de querer conhecer vinícolas, de aprender com a observação e o entendimento de cada lugar e de ouvir todas as histórias do mundo do vinho. E pensar que já se passaram mais de 20 anos….
Jornalista especializada em vinhos, Suzana Barelli agora também é colunista especial do Sonoma Market.
Suzana é atualmente colunista de vinhos do caderno Paladar, do jornal O Estado de S.Paulo. Ela escreve de vinhos desde o início dos anos 2.000. Foi editora de vinhos e diretora de redação da Revista Menu, e redatora-chefe da Revista Prazeres da Mesa. Também atuou como jornalista nas revistas Gula, Primeira Leitura e Carta Capital, e nos jornais Folha de S.Paulo e Valor Econômico.