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Vinhos em tempos de guerra, por Suzana Barelli

A invasão da Rússia em território ucraniano traz a memória o impacto das guerras nos vinhedos.

Por Suzana Barelli, especial para o Sonoma

“Vinho e Guerra”, do casal Don e Petie Kladstrup, é um dos livros que mais me impressionou sobre as histórias do mundo do vinho. Em pouco mais de 250 páginas, os autores contam a saga dos franceses para proteger dos nazistas o que chamam de o “maior tesouro da França”, os seus vinhos. Guardadas as devidas proporções, até porque a cultura do vinho não é tão arraigada na Rússia ou na Ucrânia, como é na França, as histórias desde livro voltam agora com a guerra e o tornam quase uma leitura obrigatória.

Não vejo nenhum ucraniano erguendo uma parede para esconder as suas 20 mil garrafas mais preciosas dos invasores russos – um plano que ainda bem deu certo no restaurante La Tour d’Argent para proteger os grandes rótulos de Bordeaux e de Borgonha dos soldados alemães ávidos por beber estas garrafas ou leva-las até Hitler. Nem vejo os ucranianos montando teias de aranha para confundir os russos em sua procura por garrafas pelas adegas locais. E essas são apenas duas das muitas histórias narradas no livro do casal Kladstrup.

Mas as marcas da guerra também chegarão aos vinhos, certamente. Tanto a Rússia como a Ucrânia ainda registram baixos índices de consumo de vinho – a exceção é a classe alta russa que não dispensa um grande vinho e, principalmente, um champanhe. Os poucos dados disponíveis mostram um interesse crescente pelos rótulos importados, principalmente os europeus, com destaque para França e Itália, entre os consumidores russos e ucranianos. 

A comparação mais triste com a guerra atual deve ser semelhante aquela que presenciei em uma viagem para a Áustria em 2019. Ainda pouco conhecido dos brasileiros, os vinhos austríacos têm muita qualidade, com destaque para os brancos elaborados principalmente com a uva Grüner Veltliner, e também com outras variedades, com a Riesling. Mas o roteiro do grupo de jornalistas internacionais não era um passeio tranquilo pelo Danúbio para conhecer os vinhedos e os castelos austríacos ao longo do rio, ou as clássicas regiões de Wachau, Kremstal e Kamptal.

Muito pelo contrário. Era um programa mais histórico, com visitas às vinícolas mais próximas das fronteiras com países como a Hungria, a República Checa, a Eslováquia e a Eslovênia, que no passado não muito distante faziam parte da chamada “Cortina de Ferro”. As fronteiras da Áustria e de seus vinhedos foram mudando com as guerras do século passado. Com o fim do império Austro-Húngaro, vários vinhedos austríacos passaram para o outro lado da fronteira. A situação complicou ainda mais com a Segunda Guerra Mundial, quando o país viu erguer em suas margens as barreiras da Cortina de Ferro, dividindo territórios, famílias e também os vinhedos.

Mesmo sem cruzar para os países vizinhos, as visitas aos vinhedos austríacos incluíam depoimentos de famílias que foram separadas pelas fronteiras criadas com estas guerras, e enriquecidas com apresentações de historiadores locais, que pontuavam sobre a cultura de cada fronteira. As histórias eram semelhantes em cada parada. Havia aqueles que contavam das décadas que passaram sem poder ver o irmão, a mãe ou outros parentes próximos, ou aqueles que narravam as dificuldades de cruzar a fronteira clandestinamente, não raro impedido por alguma ronda armada na faixa que separava os dois países.

Na taça, os vinhos exemplificavam esta separação entre os dois mundos. Ao mesmo tempo em que os austríacos falavam e nos davam a provar vinhos de qualidade crescente, era inevitável a comparação com os brancos e tintos do outro lado da fronteira, da Eslovênia ou da Eslováquia. A diferença de qualidade era gritante, assim diziam eles. Também é diferente o nome de cada uva. A Zweigelt, variedade tinta entre as mais plantadas no país, e a Blaufränkisch, também tinta, para citar duas uvas que conheci e gostei da Áustria, tinham outros nomes do outro lado da fronteira. 

Os encontros terminavam com fotos dos presentes com bandeirinhas, da Áustria, da Eslovênia ou da Eslováquia, conforme o local da visita, e também da União Europeia. E uma vontade de tornar mais próximos os vinhos elaborados nos dois territórios. Desde o início da década de 2010, há uma preocupação maior em promover uma conexão entre a Áustria e seus vizinhos no mundo do vinho, grande parte também pela entrada destes países na Comunidade Europeia. Um exemplo é que a partir de 2018 é possível utilizar a denominação “Vinho Varietal Transfronteiriço” para aqueles elaborados na divisa entre a Áustria e a Eslovênia. 

É de se pensar se haverá sinais de união entre os russos e os ucranianos quando esta guerra passar. Nem que seja em uma taça de vinho.

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Jornalista especializada em vinhos, Suzana Barelli agora também é colunista especial do Sonoma Market.

Suzana é atualmente colunista de vinhos do caderno Paladar, do jornal O Estado de S.Paulo. Ela escreve de vinhos desde o início dos anos 2.000. Foi editora de vinhos e diretora de redação da Revista Menu, e redatora-chefe da Revista Prazeres da Mesa. Também atuou como jornalista nas revistas Gula, Primeira Leitura e Carta Capital, e nos jornais Folha de S.Paulo e Valor Econômico.

Suzana Barelli

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