O dia 17 de abril mostra que a Malbec surpreende e revela o seu terroir em cada parte da Argentina onde é cultivada.

O dia 17 de abril, de festas em torno desta variedade, mostra que a Malbec surpreende e revela o seu terroir.

Por Suzana Barelli, especial para o Sonoma Market

A Malbec fez da Argentina a sua melhor morada. A variedade francesa, originária de Cahors, desembarcou por lá no final do século 19, pelas mãos do francês Miguel Aimé Pouget, especialista em viticultura, para nunca mais sair. Atualmente, é a cepa mais plantada no país, com 45,6 mil dos cerca de 200 mil hectares de vinhedos argentinos. Representa quase 40% das vinhas cultivadas com variedades tintas em toda a Argentina e 23% do total dos vinhedos. Desde o ano de 2011, é a variedade mais plantada no país.

Essa quase hegemonia da Malbec poderia ter se tornado uma armadilha. No mundo do vinho, onde a diversidade é um dos seus melhores encantos, um país se dedicar a uma única variedade pode não ser muito inteligente – ainda mais quando o outro lado da cordilheira dos Andes dá origem a bons vinhos com muitas uvas distintas. Mas não. Em um movimento que vem ganhando força nos últimos anos, mas que começou quietinho umas duas décadas atrás, a Argentina vem diversificando seus vinhos, mesmo aqueles elaborados apenas com a Malbec.

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Aqui, um parêntese. Isso não quer dizer que a Argentina tenha apenas a Malbec como cepa de qualidade. A Cabernet Franc é um exemplo de variedade que vem se destacando por lá, e não é a única. Mas a uva é o cartão postal do país e tem no dia de hoje, 17 de abril, a sua data festiva oficial, comemorada com muitas promoções e degustações.

Sempre me lembro de uma degustação conduzida pelo saudoso Jorge Carrara, um dos grandes degustadores que conheci, falecido recentemente. Foi no início dos anos 2000, em uma das primeiras edições da Expovinis, que chegou a ser a maior e mais importante feira de vinhos da América Latina. O tema era Malbec de norte a sul da Argentina. Degustei os vinhos do painel às cegas que, para mim, pareceram todos muito iguais. Tinha um tinto bem mais alcoólico, o único que identifiquei com um pouco diferente, e só. Quando foram reveladas as garrafas, soube que era o representante do norte da Argentina.

Atualmente essa degustação teria um resultado bem diferente. Até a coloração mais escura da Malbec é posta em cheque, com as experiências da uva vinificada em branco (quando, ao chegar à vinícola, a uva é prensada e a casca separada do mosto, que segue para fermentar). O mais tocante é que os perfis aromáticos e gustativos dos vinhos elaborados com a Malbec vem se expandindo. Seus tintos não são apenas aquelas bebidas muito frutadas, quase doces, com um floral que remete à violeta. E a sua descrição como um tinto sempre muito encorpado e com taninos sempre muito macios é posto à prova. A sutileza aromática da uva vem revelando as suas facetas, conforme o local em que a variedade está plantada.

Esta maior gama aromática é o sinal mais visível do trabalho que os enólogos argentinos vêm realizando para realmente conhecer o seu terroir e, a partir deste ponto, elaborar vinhos que traduzam esta palavra, que não tem tradução para o português. Terroir, em francês, ou terrunyo, em espanhol, resume o conjunto do solo (ou melhor, subsolo), o microclima local, a variedade cultivada e, também, a maneira como o homem “traduz” este território com seus vinhos.

É neste cenário que surge o Vale de Uco, que vem se tornando a região vinícola de maior prestígio na Argentina. A descoberta deste enorme vale ao sul de Mendoza começou tímida. O produtor Nicolás Catena, um dos pioneiros no movimento do vinho argentino de qualidade, foi também um dos primeiros a trazer visibilidade à região, com o vinhedo Adrianna. Batizado em homenagem a uma das suas filhas, Catena apostou nos vinhedos de altura, e consegue elaborar uvas com vinhas plantadas a 1.500 metros do nível do mar – em Salta, no norte do país, hoje há um vinhedo cultivado a mais de 3 mil metros do nível do mar, em plena cordilheira, em que as uvas maturam completamente.

Mais do que a altitude em que os vinhedos são cultivados, estudos do Catena Wine Institute foram os primeiros a mostrar que a luminosidade interfere na maneira em que as plantas têm o seu ciclo vegetativo, incluindo a maturação da uva. O clima não é mais medido apenas com as temperaturas (que devem ter a maior amplitude térmica durante a maturação dos frutos) e os níveis pluviométricos (que devem ser baixos, principalmente quando os frutos surgem nas vinhas), mas também pela luminosidade, ampliando, assim, o conceito de terroir.

Como a imensa Cordilheira dos Andes faz uma barreira natural, são vinhas que recebem o vento seco e quente das montanhas; que não têm a influência oceânica e que usufrui de uma grande amplitude térmica.

Mas foi o solo um dos principais fatores que levaram os produtores para o Uco, desbravando altitudes bem maiores do que a tradicional Maipú, onde as uvas eram cultivadas em grandes planícies. Mais pertos, alias, colados na Cordilheira dos Andes, o vale é dividido em três grandes zonas: Tupungato, Tunuyán e San Carlos. Em Tupungato, está a sub-região mais badalada para as vinhas, que é Gualtalary (o vinhedo Adrianna, citado acima, está aí).

Bem ao ladinho, está El Peral, que também vem se destacando. Em Tunuyán, há três áreas já classificadas com Indicações Geográficas: a IG San Pablo, separada de Gualtalary pelo rio Las Tunas, de água do degelo dos Andes; Los Chacayes e Vista Flores. Em San Carlos também estão três IGs, mostrando o fenômeno (que também vem acontecendo no Brasil) de estabelecer padrões mínimos de cultivo e elaboração para as regiões. São eles IG Paraje Altamira; IG La Consulta e IG Pampa El Cepillo.

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Estes vinhedos têm no solo um dos seus grandes diferenciais. Os milhares de anos da formação das montanhas dos Andes fez aflorar um solo granítico, mas rodeado de muito carbonato de cálcio, o tal de solo calcário, atualmente tão valorizados. “Embaixo da terra, as raízes parecem abraçar as pedras”, poetiza o produtor Sebastian Zuccardi.

E estas descobertas estão apenas começando. Sorte da Malbec, e da sua diversidade.

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Jornalista especializada em vinhos, Suzana Barelli agora também é colunista especial do Sonoma Market.

Suzana é atualmente colunista de vinhos do caderno Paladar, do jornal O Estado de S.Paulo. Ela escreve de vinhos desde o início dos anos 2.000. Foi editora de vinhos e diretora de redação da Revista Menu, e redatora-chefe da Revista Prazeres da Mesa. Também atuou como jornalista nas revistas Gula, Primeira Leitura e Carta Capital, e nos jornais Folha de S.Paulo e Valor Econômico.

 

 

Suzana Barelli

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